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Enxugamento é uma das apostas para curto e médio prazo.

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Matéria Jornal do Comércio 31/08/2015, Guilherme Daroit. Foto: Marcelo G. Ribeiro/JC 

Até 2014, a empresa acumulava R$ 519,2 milhões em prejuízos

Entre os débitos estão empréstimos feitos no passado pelo Estado.

Criada em 1952 para prestar serviços de armazenagem aos produtores gaúchos, a Companhia Estadual de Silos e Armazéns (Cesa) estoca, hoje, mais dívidas do que grãos. Até o fim de 2014, data-base do último balanço oficial, a empresa acumulava R$ 519,2 milhões em prejuízos. Pior, apresentava um patrimônio líquido negativo de R$ 257,8 milhões ? ou seja, mesmo que revertesse todos os seus ativos (como prédios, terrenos e créditos a receber) em capital, ainda lhe faltaria uma soma vultuosa para “zerar” as dívidas.

“Salvo algum fato novo que possa reverter a situação financeira, a companhia está completamente inviável”, conclui, após análise do balanço, o contador e diretor-financeiro do Sescon-RS, Mauricio Gatti. A avaliação segue em linha com a última auditoria de acompanhamento da gestão da Cesa feita pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), também referente ao ano fiscal de 2014. No documento, ainda em tempo legal de defesa da empresa e disponível ao público pela Lei de Acesso à Informação, os auditores afirmam que, se fosse privada, a Cesa já teria tido sua falência declarada há muitos anos.

Para quem se depara com essas informações, não chega a causar surpresa que a Cesa esteja, hoje, no olho do furacão do ajuste fiscal proposto pelo governo estadual. Depois de muita especulação sobre o futuro da empresa, o governador José Ivo Sartori incluiu, no terceiro pacote apresentado no início do mês, o encaminhamento de projeto à Assembleia Legislativa para que seja retirada a exigência de plebiscito para a venda ou extinção da companhia, condição que a Cesa compartilha na Constituição Estadual com outras estatais como CEEE, Corsan, Banrisul, Sulgás, Procergs e CRM.

A avaliação, porém, não é tão simples e nem consensual entre as partes envolvidas com a empresa. Um dos motivos apontados é que, desde 2011, a Cesa dá lucro, quando levado em conta apenas a sua operação. No ano passado, por exemplo, apenas com a atividade-fim, a empresa teria dado lucro de R$ 2,1 milhões. Em 2013, teria sido ainda maior, de R$ 5,8 milhões. “Se levássemos em conta só o ano de 2015, teríamos de novo um resultado satisfatório. Mas temos que fazer esse encontro de contas com o passado”, lamenta o atual diretor-presidente da Cesa, o ex-prefeito de Tupandi, Carlos Kercher.

A herança é mesmo pesada: a companhia tem um passivo que passa dos R$ 422 milhões, valor que levaria muitos anos a ser pago apenas com o lucro da armazenagem. A empresa, entretanto, contesta os números, e está em processo de contratação para uma nova auditoria contábil. “Precisamos modernizar esses números e adequá-los à realidade da Cesa”, afirma o diretor administrativo financeiro, o ex-deputado Francisco Appio. Com atualização nos valores dos patrimônios físicos da empresa, que estariam defasados, e acordos ou decisões sobre os débitos em andamento, a diretoria acredita conseguir reduzir o passivo para menos da metade já no balanço de 2015.

Outras medidas, como a redução de horas-extras e de uso de táxis, cortes de energia nas unidades desativadas e revisão em contratos de terceirizadas também estariam sendo realizadas para estancar o sangramento. Como exemplo, a atual gestão cita que, em 2014, apenas as cinco unidades inativas (Passo Fundo, Estação, Santa Bárbara do Sul, Nova Prata e Caxias do Sul) custaram cerca de R$ 1 milhão em manutenção e vigilância armada e, mesmo assim, não restou nenhum equipamento de valor nelas, todos furtados ao longo do tempo, um símbolo do descaso que marca a história da Cesa e complica, agora, seu futuro.

Mesmo com a venda, grande parte do passivo seguiria com o governo

Uma das principais críticas à tentativa de venda ou extinção da Cesa é a de que, mesmo que isso ocorra, boa parte das obrigações que hoje causam problema em sua contabilidade continuaria. Segundo o Sindicato dos Auxiliares de Administração de Armazéns Gerais no Estado (Sagers), 71,17% das dívidas da empresa são, na verdade, de responsabilidade do Executivo, e não da estatal. “A Cesa, mais uma vez, é colocada como patinho feio. Acabando com ela, o passivo seguiria e, pior, sem a receita que entra atualmente”, argumenta o presidente da entidade, Lourival Pereira.

Entre os débitos, estão, por exemplo, empréstimos que teriam sido feitos ao longo do tempo pelo governo do Estado junto à Fundação Silius, que é o fundo de pensão dos funcionários da Cesa, e que tornou-se passivo da estatal. A dívida, que já gerou duas intervenções federais na Silius, foi parcelada em 228 parcelas mensais que só acabam em 2021.

Outra reclamação é direcionada à informação de que o governo precisa repassar valores mensais à Cesa para pagamento de folha, rebatida até pela própria empresa. “Não pegamos um centavo do Executivo para custeio”, defende o diretor administrativo e financeiro, Francisco Appio, remontando ao lucro operacional da companhia. Os repasses mensais de R$ 2,5 milhões, atrasados nos últimos meses, seriam utilizados para, além do pagamento à Silius, quitar parcelas de refinanciamento de dívidas com a Receita Federal e o pagamento dos proventos de 82 ex-autárquicos.

Essa folha paralela, que custou, em julho, R$ 714 mil, também não sumiria do passivo do Executivo enquanto os beneficiados forem vivos. São servidores aposentados, efetivados antes da transformação da então autarquia em empresa de economia mista, em 1970. “Na lógica, ali deveriam ter sido realocados para outros órgãos no Estado, mas optaram por deixar o pessoal na Cesa e fazer esse repasse, já que mantiveram seus direitos”, comenta o ex-presidente da estatal até 2014, o vereador de São Jerônimo, Márcio Pilger.

A forma com que esse repasse é feito, aliás, também infla o passivo da companhia. Como não são exatamente empréstimos, a verba é, legalmente, classificada como “adiantamento para aumento de capital”, totalizando mais de R$ 176,8 milhões até o fim do ano passado. Para que saia do passivo, basta o acionista majoritário (o governo estadual, detentor de 99,93% das ações) aprovar o tal aumento em assembleia. “Hoje, a despesa é duplicada no balanço, pois constam os débitos reais e mais os repasses do Estado utilizados para pagar esses débitos”, argumenta Appio, que classifica como “fantasia” esse tipo de classificação.

Em caso de alienação, o atual quadro de funcionários dificilmente seria empecilho. Além de 89 contratos emergenciais até novembro, os demais 58 servidores efetivados são regidos pela CLT, com aposentadoria pelo INSS. “Nosso problema hoje é a falta de pessoal”, agrega Appio, que conta existirem filiais da Cesa com um ou dois funcionários apenas.

Enxugamento é uma das apostas para curto e médio prazo

A Casa Civil e a Secretaria Geral de Governo não responderam aos pedidos de entrevista. Mas, de qualquer forma, se o governo estadual está contando com a venda total da Cesa, esse tipo de ação não seria para agora. Além da aprovação pelos deputados, o processo ainda dependeria de avaliações, editais e, claro, da existência de algum interessado. E, mesmo que houvesse um, o passivo dificilmente passaria ao novo dono. O supervisor das contas estaduais no TCE, Claiton Paim Moreira, lembra do que aconteceu com a venda de parte da CEEE. “Todas as empresas fatiadas foram privatizadas limpas, e o passivo ficou para a estatal”, exemplifica.

Uma possível solução – menos demorada – foi aprovada pelo conselho de administração da Cesa, presidido pelo secretário estadual de Agricultura e Pecuária, Ernani Polo, no último dia 17 de agosto. No encontro, a estatal recomendou ao Executivo que disponibilize à iniciativa privada 12 de suas unidades, mantendo sob seu domínio as outras 13 mais viáveis. “Temos interessados em parcerias, e estamos pensando em como fazer isso, se por aluguel, comodato ou mesmo cedência”, explica o diretor-presidente da Cesa, Carlos Kercher. Ao contrário da alienação total, a venda de unidades depende apenas de decisões administrativas, segundo o TCE. O patrimônio da estatal em Passo Fundo, por exemplo, filial já desativada, já foi posta à venda três vezes nos últimos anos, sem sucesso. A unidade é representativa de boa parte dos silos e armazéns da Cesa, que, com o passar do tempo, acabaram engolidos pelo crescimento das cidades. Em Passo Fundo, o terreno fica ao lado da avenida Brasil, principal via do município, e teria como possível destino a construção civil, e não a armazenagem.

Além dela, segundo Kercher, a filial desativada de Estação também já estaria em processo de negociação. Estação, aliás, também abriga a maior parte dos 500 hectares de hortos que a Cesa ainda possui, antigamente usados para a plantação de eucaliptos destinados à secagem de grãos e hoje também à venda. Há tentativas de acordo com o ?Incra para a desapropriação de parcelas ocupadas dessas terras como forma de fazer caixa.

Enquanto não há destino definido, porém, as unidades ainda ativas continuarão sendo operadas normalmente pela Cesa, segundo Kercher. Há dúvidas, porém, quanto a possibilidade real de aparecem compradores. “Ninguém vai querer comprar sem que a Cesa apresente uma certidão negativa de débito, hoje impossível”, aposta o presidente do Sagers, Lourival Pereira.

Um dos motivos para isso é uma ação de matriz salarial já vencida na Justiça pelo próprio sindicato, agora em discussão de valor, que pode variar entre R$ 30 milhões, como defende a empresa, e mais de R$ 140 milhões, segundo o Sagers. A ação, movida pelo fato de a Cesa não pagar o piso da categoria, é uma das mais de 400 causas trabalhistas em que a empresa é ré.

Pequenos produtores ainda são dependentes da estrutura da estatal para estocar grão

Segundo o TCE, os armazéns com capacidade total de 632 mil toneladas da estatal representariam apenas 1,7% do setor no Rio Grande do Sul. No início do mês, a ocupação das unidades estava em apenas 19,5%, número que cresce para mais de 50% durante a safra. Ainda que tenha perdido boa parte de sua relevância com o tempo, um possível fim da Cesa deixaria órfãos, principalmente, os pequenos produtores gaúchos.

Além de cumprir seu já não mais tão relevante papel de estoque público, com o objetivo de segurar preços ou abastecer o mercado em períodos de falta de produto, por exemplo, a Cesa serve como balizadora de preços para a armazenagem. “Como é mais barata, ela consegue puxar para baixo os preços dos armazéns privados”, comenta o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag), Carlos Joel da Silva.

Em algumas de suas unidades, a situação é ainda mais visível. O frigorífico mantido pela companhia em Capão do Leão, por exemplo, atenderia a mais de 90% da produção de pescado de pequenos criadores da região. “A unidade chegou a ser fechada, com o argumento de que tinha apenas 15% de ocupação. Mas isso é quase toda a produção da agricultura familiar, que ficaria desabrigada, e tem também o fator social envolvido”, defende o presidente do Sagers, Lourival Pereira.

As unidades de Camaquã representam papel semelhante para os produtores de arroz, que também utilizam a unidade portuária de Rio Grande para exportação do grão, antes rejeitado pelos terminais privados. “A filial de Rio Grande é de interesse estratégico do setor. Entendemos que deva seguir pública, mas que seja qualificada por um parceiro privado, por meio de uma PPP”, defende o presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), Henrique Dornelles.

Fechada durante todo o ano de 2014 por conta das reformas do porto, que, após concluídas, devem fazer com que navios maiores a acessem, a filial ainda aguarda a instalação de um equipamento, já adquirido, que tornaria o embarque dos grãos mais barato e fácil. Até por isso, é hoje, provavelmente, a unidade mais atrativa da estatal. Também com acesso a um porto, a filial da Capital é outra unidade bastante utilizada. Nesse caso, principalmente, por importadores de trigo.

Há, ainda, com destaque, às filiais de Estrela e Garibaldi, um convênio da Cesa com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a venda do milho a balcão aos pequenos criadores de animais. “Que empresa privada vai querer receber carroças de hora em hora para pegar três sacos de milho para ração?”, questiona o ex-presidente da Cesa, Márcio Pilger, ressaltando o papel social da empresa que estoca, hoje, 18 mil toneladas de milho, com previsão de mais 20 mil toneladas até o fim do ano.

Para o superintendente da Conab em solo gaúcho, Glauto Lisboa Melo Júnior, a localização privilegiada de alguns armazéns da Cesa nas regiões produtoras e a falta de unidades próprias da entidade federal, torna importante a parceria. “Para nós, hoje, a Cesa é fundamental e qualquer evento como venda ou fechamento pode vir a nos afetar”, comenta Melo.

“Se aprovado o projeto, caso o governo queira vender a Cesa como um todo, poderá fazê-lo, mas é muito difícil pela capilaridade e todas essas particularidades”, analisa o diretor-presidente da estatal, Carlos Kercher. Em comum, todos os dirigentes afirmam que é preciso manter as unidades lucrativas ou com alguma relevância social, mesmo que signifique sacrificar outras unidades para sanear a empresa e permitir novos e necessários investimentos em melhorias.

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